Impressões & outras intervenções...
* Textos: Herman Silvani
* Fotos: Herman e Liza Bueno
Parte I
Mais um festival Psicodália de carnaval aconteceu e a saudade
já bate no peito. Edição comemorativa, 20º edição em 16 anos de festival - descobri
isso numa conversa noturna com o Alexandre Osiecki pelas ‘ruas’ do Psicodália
(um dos organizadores do festival e baixista da banda Nave Maria). Sim, o Psicodália em alguns momentos parece uma
cidade. Ou melhor, uma comunidade, dessas alternativas, utópicas,
independentes. A fazenda Evaristo tem ruas. E no Psicodália, essas ruas tem
nomes. Nomes que são homenagens à artistas que já se foram e deixaram seus
legados artísticos para o mundo. Esta edição do Psicodália foi diferente da
anterior, alguém disse. Sim, foi. E a anterior foi diferente da outra que foi
diferente da outra. E assim foi e assim vai. O Psicodália mudou, também ouvi.
Sim, mudou. Ele sempre muda. Pra melhor, pra pior? Sim. Também. Em algum
sentido sim, em outro sentido, também. Mas vamos aos fatos e alguns boatos.
Boas leituras!
Baterias carregadas (as nossas e as das câmeras fotográficas),
mochilas feitas, depois horas de estrada. Uma cervejinha gelada, compartilhada
com amigos e novos contatos na fila de chegada para relaxar e comemorar. Já
dentro da fazenda, barracas armadas (desta vez acampamos no Casa das Máquinas), um role e tiros, muitos tiros, para todos
os lados (fotos). Completamos 11 anos de Psicodália (eu e Liza), todos eles
divulgando o festival, 8 ou 9 anos ‘oficialmente’ trabalhando como imprensa, fotografando,
escrevendo, entrevistando, divulgando, pré e pós evento (e tocando em 2 edições
com a Epopeia, 2013 e 2016), o que nos faz, de certo modo, ser parte do
festival, para além de público (o que também somos, pois, além dos trabalhos,
curtimos o festival e suas atrações), o que muito nos honra, pois para nós que
vivemos parcialmente experiências ‘alternativas’, vivenciar e somar num evento
como o Psicodália é questão de ‘causa’ e não obrigação ou apenas diversão
(muito menos turismo). Acompanhamos neste tempo de integração, o crescimento do
festival, seus vários e deliciosos sabores - e alguns dissabores, já que
falamos de um evento que se tornou de grande proporção dentro do contexto
‘alternativo-independente’, feito por pessoas, e que acolhe outras pessoas de
variados pensamentos, segmentos, costumes, hábitos. Ou seja, o Psicodália não é
o paraíso (ele, o paraíso, não passa de um ideal), e também não é uma religião
onde todos seguem uma mesma crença. Enfim, vamos aos shows...
Primeiramente: “FORA
TEMER!” - Sexta,
24/02
Sá & Guarabyra (Palco Lunar) foi a primeira atração
que curtimos na primeira noite de Psicodália. Mais que uma dupla, um trio. Digo
isso pelo fato de Pedrão (leia-se Som Nosso
de Cada Dia, banda que tivemos o prazer de ter visto e conversado numa das
edições do Psicodália, ainda quando era realizado em São Martinho),
simplesmente um dos grandes baixistas e cantores do rock nacional, fazer parte
deste show. Além dele, toda a banda, muito competente musicalmente falando. Um
belíssimo show, como foi da outra vez em que tocaram no festival. Sá e Guarabyra
continuam poéticos com suas belas canções, cantadas em coro pelo público, para
dizer ao mundo que o Psicodália começara ‘muito bem obrigado!’, com a saúde
artística e musical de sempre, e com um ‘agravante’, gritado pelo grande
público em bom e alto tom: “FORA TEMER! FORA TEMER!”, tanto que, o palco
silenciou por alguns instantes na espera do término da manifestação oportuna e
coerente do grande e consciente público que, em vários momentos do festival,
seja durante os shows ou a partir dos acampamentos, manifestou-se contra este
governo e seus vários golpes. Para quem não queria ‘misturar política com
arte’, não teve jeito (a ‘arte’ já não seria uma forma de ‘política’?). Durante
todo o festival, incrivelmente, ouvi mais ‘Fora Temer’ do que ‘Wagner’. Ainda
bem! Sá e Guarabyra também deixaram
alguns recados ‘políticos’ ao ironizar o governo do norte da América de Trump e
seu projeto contra a imigração. No primeiro dia, na primeira noite, já tivemos
um ‘pré’ do que seriam os outros dias do festival. E penso que não haveria de
ser diferente, dadas às circunstâncias que todos os acordados deste país devem
saber. Talvez me decepcionasse se fosse o contrário. Já pensou ouvir do grande
público “Bolsonaro 2018”?, ou “Viva Moro!”? Aí sim teríamos sérios problemas de
incoerência ou contradição. Enfim. “FORA TEMER!” mais uma vez – só pra não
perder a deixa...
Casa das Máquinas (Palco Lunar) sobe ao palco com o
gás costumeiro de sempre. Instrumental impecável e vocal que complementa bem o
todo. Encontrar os amigos pela fazenda e poder novamente trocar alguns dedos de
prosa com os mesmos, é sempre bom. Conhecemos o Marcelo Schevano (atual guitarrista da Casa) desde início dos anos 2000, quando tocava na Patrulha do Espaço, outra das grandes
bandas do rock nacional, capitaneada pelo mestre e amigo Rolando Castello Junior, um dos maiores bateristas do nosso rock. Conhecemos
pessoalmente os demais habitantes (ou trabalhadores) da Casa das Máquinas quando,
nos últimos meses de 2016, com a Epopeia,
dividimos o palco, por duas vezes aqui na região Oeste de Santa Catarina. Foram
boas experiências, além de musicais, humanas. Marinho (bateria) e Fabio
(baixo), além de grandes músicos, são muito simpáticos. Cito ambos, pois, foi
os que mais tivemos contato (além do Marcelo).
Já havíamos visto a banda por duas vezes no Psicodália, sendo a primeira ainda numa
das edições em São Martinho, que contava com Faíska (Joelho de Porco) na
guitarra, os irmãos Netinho (Os Incríveis e Casa formação original) e Marinho
(Casa e Tutti-Frutti) nas baterias (isso mesmo, o show teve as duas
baterias tocando simultaneamente), Andria
(Dr. Sin) no baixo e vocal, e Testoni nos teclados. Casa das Máquinas, uma das grandes
bandas do rock setentista nacional, mais uma vez levantou o público com seus
clássicos e deixou no ar uma das suas novas composições. Pelo que me parece vem
disco novo por aí, o que faz (ou fará) da banda, além de ‘clássica’, uma banda
atual. Enfim, ficamos na torcida e aguardo...
Cabruêra (Palco dos Guerreiros) foi uma das
bandas que eu e Liza mais esperávamos ver neste Psicodália. E vimos. E
cantamos, suamos, dançamos, sentimos, sorrimos. Um show, uma festa, um ritual,
uma roda, que integrou e trouxe o nordeste para o Psicodália. Estávamos lá,
todos nós, de mãos dadas entregues ao momento. Vimos, nos enlaçamos: Francisco el Hombre, Liniker, Sopro Difuso,
Bandinha Di Dá Dó, Cia Conta Causos,
Epopeia, entre tantos outros, dançando, cantando, integrando a grande roda.
Grande show, grande banda, grande som! Ritmos nordestinos, muita criatividade e
psicodelia rural-sertaneja (do sertão), a típica psicodelia brasileira, tão ou
mais psicodélica que a californiana. O antigo e o novo, num tanto de
rusticidade com tecnologia mecânica, feita a caneta, vozes, efeitos. Quem
viu/ouviu sabe do que estou falando. Energia e espiritualidade. Música e
linguagem, para além da simples compreensão. No chão da Cabruêra, o negócio é sentir, integrar e cair na roda. Obrigado
sertão!
Depois de Cabruêra saímos para um role na fazenda, encontrar
amigos/as da região e outros que só encontramos no Psicodália. E a noite se
encerrou entre o cansaço de uma longa viagem e uma energia positiva
possibilitada pela primeira noite de Psicodália. Deitamos e fomos sucumbindo,
sorridentes num sono recheado de sonhos alegres, afinal, sabíamos, era só a
primeira noite...
(da esq. para a dir.): Liza, Daniel, Sergio, Josiane, eu...
“Mulher, negra,
macumbeira e de esquerda...” – Sábado, 25/02
O dia nasce na fazenda Evaristo. Acordo com ele (o dia) já de
pé e caminhando. Demoro para levantar. A mente quer, mas o corpo não deixa.
Vamos respeitar a natureza e esperar, até que o corpo possa. Mente e corpo em
sintonia, energia pronta, equilíbrio feito. De pé e acordados, um mate cevado
compartilhado em roda com novos vizinhos de acampamento recém conhecidos.
Depois um café passado e rua. Caminhar, interagir, integrar, fotografar (não
necessariamente nesta ordem). Assim passamos o dia. Entre visitas a oficinas,
Yoga e Tai Chi Chuan, alguns tragos e estragos, muita alegria, diversão,
trabalho: prazer! Essa foi a ‘lei’. Essa foi a ‘regra’. Até a noite chegar e
vir nos abraçar, como uma mãe abraça um filho, com carinho, amor, e proteção. Aconchegados
por ela para mais uma noite de belos shows. E nós retribuímos com sorrisos e
abraços nas estrelas...
Cátia de França (Palco do Sol), primeira mulher que ‘ouvimos’
subir ao palco desta edição do Psicodália para um show. ‘Ouvimos’ porque quando
chegamos frente ao palco já estava se despedindo, tanto que nem deu para
fotografarmos, então, praticamente não vimos o show. Ficamos tristes com isso, pois
foi uma das atrações esperadas por nós. Porém, recompensados e mui alegres com
seu carinho e diálogo na coletiva de imprensa. Cátia de França, uma estrela não fabricada, mas de brilho próprio,
natural. Simplesmente uma mestra ou maestra da música e cultura brasileiras.
Uma das conversas mais sinceras que já tivemos numa coletiva de imprensa. Entre
assumidas condições e firmes posições, um sorriso pleno e vivaz de pessoa que
muito viveu e muito sabe. Que energia daquela mulher! Abençoou a Liza
apertando-lhe docilmente as mãos, nos emocionando, e garanto, emocionando
também os demais que de bênçãos de avós ou pais cresceram um dia. Também tive o
prazer de ter sua benção. Meu corpo se encheu de energia e minha alma de
alegria. Na entrevista, quando indagada sobre ‘ser mulher ontem e hoje,
cantora, artista, em relação ao atual contexto político nacional’, respondeu
com firmeza: “Minha filha... ‘Sou Mulher,
negra, macumbeira e de esquerda...’ além de outras coisas que não precisa
dizer aqui, que não vem ao caso...” (rindo-se neste momento da fala). Afirmou-se
como artista e mulher que canta a vida, e por isso a vive como tal. Artista que
‘paga aluguel e não tem carro’. Que não vive na TV e pela TV e que, por isso
não é menos artista - mas talvez, seja mais. Se perdemos visualmente seu show,
ganhamos sua luz e presença pessoal nos ‘bastidores’. Um dos grandes momentos
do Psicodália 2017 para nós. Obrigado Cátia
de França! E foi assim que começamos nossa intensa noite de sábado no
Psicodália...
Um giro pela fazenda, entre uma cerveja e outra, diálogos com
amigos/as, conhecidos/as, cães que passeavam livremente pelas ruas, paramos em
frente a Rádio Kombi onde rolava a festa da Noite Funk. Muita dança e diversão
ao som do soul-music nacional e internacional. Ficamos ali por algum tempo e fomos
para o Palco Lunar, começava o show de Di
Melo & Trombone de Frutas. E que show, eim?! Mais uma vez, ambos,
mandaram brasa e fizeram o público subir. Muito swing, muita vibe, energia.
Musical de primeira da Trombone e
poética profunda do mestre Di Melo.
Além dela, mais uma vez, a política. O grito em coro “FORA TEMER!” novamente se
fez ouvir por toda a fazenda. Além da multidão, a banda Trombone de Frutas cantou em um de seus refrões este ‘grito’. Sim,
“FORA TEMER!” como refrão da música. Teve também discurso? Teve! E com muita
propriedade. Olha só seu governo, acho que deu, né? Vai-se embora que já passou
da hora. Aliás, nunca deveria ter sido. Ouça o eco e vaza! Adquira talvez
assim, um mínimo de dignidade. Pede pra sair. Sai fora! Vai! Competência, musicalidade,
arte, manifestação, política! Isso mesmo meus caros e caras, isso também é o
Psicodália. Isso também é o mundo!
Liniker foi a próxima atração a subir no
Palco Lunar. Já muito conhecida do grande público alternativo, Liniker e banda fizeram um belíssimo
show. Confesso que, não era muito fã das músicas, apenas simpatizava com elas
(não sei ainda se sou tão fã, mas já gosto mais). Tocamos com a Epopeia no Morrostock mais recente (2016), no final do ano em Santa Maria/RS,
festival na mesma vibe do Psicodália
(um tanto menor, mas não menos intenso), onde Liniker também tocou, e não tivemos a chance de ver o show, já que
bem na hora passávamos o som no nosso palco que era outro. Volta e meia, ouvimos
seu som em casa, mas de tantos sons e bandas que ouvimos, não era um dos que
nos chamava tanto a atenção. Apreciávamos mais a questão estética e artística
dela e banda em palco do que o som propriamente dito. Porém, agora, depois de
ver/ouvir ao vivo, opa, algo mudou. Ouvimos um tanto mais. Coisas que ‘só vendo
pra crer’, como diz o velho e popular chavão. Ou seja, a soma do som com a
imagem, e principalmente a imagem apresentada (ao vivo), presencial, gera outra
compreensão e sensação que, às vezes só as gravações não oferecem. E Liniker, eu gostando um tanto ou não, é
uma grande artista e canta e dança em uma grande banda. E isso eu posso
afirmar, entendendo um pouco mais do que estou falando agora, depois de
ver/ouvir e sentir o show ali, bem na minha frente. Muito bom! Valeu cada
acorde musical, cada palavra cantada ou dita no palco. E, amigos/as, houve
também ‘manifestos’, artísticos, políticos, de gênero. Ouve vida e postura.
Grande energia que se expandiu por toda a fazenda... e pelo mundo, porque não?!
Metá-Metá (Palco Lunar) já é uma banda bem
conhecida do público que frequenta a mais tempo o Psicodália. Já vimos, pelo
menos 3 vezes seus shows no festival. Sempre muito bons e diferentes um do
outro. Uma grande banda. Grandes músicos e uma vocal que chama toda a vista
para o palco. Ficar alheio? Jamais! Da MPB, progressivo ao punk hard core, Metá-Metá faz tremer o chão e tudo o que
estiver sobre ele. Um peso musical que vem não sei de onde. Talvez da alma,
talvez da composição. Sim, da composição. Metá-Metá
é uma composição – também! E mais uma vez, nos fez vibrar e sentir. Grande
show!
Era bem tarde da noite ou cedo do dia, dependendo do ponto de
partida, e a Orquestra Friorenta
tocava no Palco dos Guerreiros quando, por algum impulso astral do universo
transcendental conspirador, fomos levados a ir até onde a banda conspirava ou
fazia seu ritual. E lá chegamos. E lá estava ela, a tal da Orquestra Friorenta. Um show instigante, provocativo e, é claro,
musical, muito musical. Um tanto de teatro ou representação no palco – nos bons
sentidos artísticos das palavras (como preferirem). As indumentárias eram um
show a parte. Engraçado e crítico. Olha aí, novamente ela, a política (na sua
ampla e possível concepção). Política é também relação, ato, feitura, ação,
para além das instituições. Questionar as tradições e as coisas quadradas
postas em seus (in)devidos lugares, seja pela música, pela performance ou pela
palavra, também é um ato político, não é? Então... Orquestra Friorenta fez isso, além do bom show que nos fez retardar
o cansaço de um dia e uma noite intensos nos deixando energias para um tanto do
próximo show que viria...
Charles & os
Marretas continuou
com o estrago no Palco dos Guerreiros. Corpo esgualepado, mas cabeça pensante e
sensibilidade aguçada. Ao som do Funk/Soul/Black, o público dançou, pulou,
vibrou com o balanço desse grupo. Uma baita banda que fez jus ao seu horário de
tocar. Guerreiros os que dançam e cantam. Guerreiros os que tocam e fazem
dançar e cantar. Ficamos por um bom tempo curtindo o belo show – era difícil
desgrudar e não balançar o corpo. Sonzêra, eim?! Resistimos. Até um vento convidativo
vir sussurrar aos nossos ouvidos para outros prazeres: o de comer, beber,
conversar, sorrir e por fim, dormir. E lá se fomos, investir um tempo nisso, no
Saloon. O tempo se perdera e o sorriso embriagado da manhã surgia no horizonte,
sob a lona da barraca, umedecida pelos pingos de uma chuva que ensaiava, mas
não caia – ou era o orvalho que despencava da copa dos pinheiros que compõem a
paisagem campestre do lugar?
Continua...